Dizia de manhã o Mário que em se tratando de literatura brasileira ninguém lhe fala de Erico Veríssimo. Para lhe fazer a vontade vou escrever sobre o meu livro preferido do Sr. Verissimo - e um dos dois únicos que li dele... - "O resto é silêncio".
Já lá vai algum tempo desde que o li mas a ver se me lembro do essencial.
(e com a ajuda de um site dedicado ao escritor)...
Num anoitecer de Sexta-Feira Santa, uma rapariga desconhecida atirou-se do décimo andar dum edifício em Porto Alegre. Sete pessoas pelo menos a viram cair: um desembargador aposentado... um homem de negócios à beira da falência... um romancista... um ex-deputado e advogado próspero... um pequeno vendedor de jornais... um noctívago... e uma mulher que tinha um problema de consciência...
O autor apresenta essas personagens antes do fato, descreve a reação de cada uma diante do suicídio, e depois nos conta o que foi a vida desse grupo durante as vinte e oito horas que se seguiram. Novos tipos e problemas surgem à medida que a narrativa avança, e o resultado final é uma espécie de grande quadro mural representativo da hora que estamos vivendo.
Voltando um pouco à técnica de Caminhos Cruzados, mas apresentando as personagens e a história dum ângulo novo, Erico Verissimo nos dá em O Resto é Silêncio talvez o seu romance mais denso e maduro.
Numa crítica na revista "The Inter-American", escreveu Harriet de Onís:
"Eis um romance magistral, de valor inestimável para todos quanto desejam conhecer a vida e a literatura do Brasil. Ao estilo brilhante e ao espiríto que caracterizavam suas obras anteriores, em O Resto é Silêncio Verissimo acresenta a maior qualidade do romancista: o poder de criar personagens vivas. Os retratos que dela nos pinta são de tal maneira completos, tão dimencionais, que elas existem em sua inteireza não só tais como aparecem ao mundo exterior, como também da maneira que elas se imaginam ou desejariam ser."
Este romance já foi traduzido para várias línguas, tendo sido editado nos Estados Unidos, na Inglaterra, em Portugal, na Bélgica, na Itália e na Argentina. Despertando assim interesse universal, O Resto é Silêncio firma-se como uma das melhores obras da moderna literatura brasileira.
Num anoitecer de outono do ano de mil novecentos e quarenta e um, estando eu a conversar com um amigo numa das calçadas da Praça Senador Florêncio, no coração de Porto Alegre - vi precipitar-se, de um dos andares médios de um edifício fronteiro, uma coisa com forma humana que foi cair no meio da rua. Quando corri com outros curiosos na direção do "objeto", verifiquei tratar-se do corpo duma rapariga loura, alva e franzina, que agora ali estava, estendida sobre as pedras do pavimento, com os olhos abertos e vidrados, e uma estranha expressão de serenidade no rosto palidíssimo. Quando o carro do Pronto Socorro chegou e o médico de plantão se inclinou sobre a criatura, ela já estava morta. Suas feições me eram completamente desconhecidas. Não tive, porém , coragem de estudá-las demoradamente, pois me afastei dali profundamente perturbado, levando comigo uma vaga sensação de culpa ou, melhor, de responsabilidade.
Um ano depois escrevi um romance cujo ponto de partida era o caso da moça loura em torno do qual a opinião pública se dividia, pois embora a polícia afirmava tratar-se dum suicídio, havia quem insistisse em que a desconhecida tinha sido assassinada.
Na minha história - que é como Caminhos Cruzados uma espécie de corte transversal numa sociedade - sete pessoal presenciam a queda da rapariga, que assim é vista de sete ângulos diferentes. O artifício me pareceu rico de possibilidades. Num romance dessa natureza eu poderia, entre outras coisas, fazer uma série de experiências com o tempo da narrativa, mostrar a falibilidade da prova testemunhal, e sugerir, enfim, que, em última análise, nós os seres humanos sabemos muito pouco uns dos outros.
A suicida (ou assassinada) da vida real deixou de me interessar desde o momento em que, com o nome de Joana Karewska, passou a ser personagem de meu novo romance.
O Resto é Silêncio talvez seja o princípio duma nova fase na carreira literária do autor, o qual, desse livro para diante, passou a trabalhar a forma com maior cuidado, procurando evitar as facilidades e simplificações que haviam tornado tão frouxo e desigual o estilo dos romances anteriores.
Quanto às personagens é natural que aqui e ali ainda se notem traços de caricatura, principalmente no retrato do Desembargador Lustosa. E se por um lado talvez falte a este romance a vivacidade e espontaneidade de Caminhos Cruzados, por outro suas personagens me parece terem sido pintadas com um mais intenso fino senso de volume e matiz.
Tônio Santiago é evidentemente um auto-retrato, mas um auto-retrato estilizado, sem nenhum rigor verista. Quando escrevi este romance, meus dois filhos - Clarissa e Luís Fernando - iinham respectivamente sete e seis anos. Apresentei-os na história como tendo vinte e dezoito anos, e achei divertido profetizar-lhes o temperamento, as tendências, os gostos e as preocupações. Rita, portanto, é uma filha postiça, o que não impede que até certo ponto ela guarde uma certa parecença, se não física pelo menos psicológica, com a Clarissa de minha primeira novela.
Já nesta altura de sua carreira, o autor pode afirmar sem receio de rrar que tipos como o de Marcelo Barreiro, o católico quase místico, não são positivamente o seu forte. O contrário, porém, se passa com o velho Quim Barreiro. Esse primo não mui remoto do General Chicuta Campolargo de Um Lugar ao Sol e daquele Coronel Jango Jorge que aparece rapidamente numa cena de Saga, me parece uma personagem bem realizada. Dum modo geral se poderá dizer que ao pôr de pé Quim Barreiro, ao fazê-lo falar, mover-se, lembrar-se, desejar e sentir, o autor estava como que a exercitar-se para fazer frente à vasta galeria de O Tempo e o Vento.
Tenho uma simpatia especial pela pessoa de Juca, amigo fiel de Norival. E confesso não ter tido a menor má vontade par com o próprio Petra, o negociante sem escrúpulos.
Aristides Barreiro, advogado e politiqueiro desonesto, de acordo com um velho plano, devia aparecer em O Tempo e o Vento.
Aurora e Aurélio, filhos de Aristides, me são indiferentes, e creio que isso fica visível nas páginas do livro. Verônica, mãe de ambos, também me deixa frio.
Tenho, porém, profunda simpatia e o maior interesse por Marina. Quanto ao seu marido, o compositor Bernardo Rezende, julgo tê-lo tratado com uma condescendência tocada de sarcasmo.
Até hoje não sei exatamente o que penso de Roberto, o repórter, e de Tilda, namorada de "meu filho" Gil. Simpatizo vagamente com o Chicharro, e gosto de Sete Meis - personagem cuja gênese está explicada num artigo contido no primeiro volume desta coleção.
Que faltará a O Resto é Silêncio para que seja um romance realmente bom? Falta-lhe principalmente calor, carga emocional. Relendo-o, concluo também que devia ter dado muita mais espaço e tempo ao inquérito particular de Tônio Santiago em torno da morte de Joana Karewska. Eu devia ter usado nesse trecho do livro a técnica do conto policial, pois isso teria dado à história mais encanto e mistério, bem como um maior interesse novelesco.
Não será demais repetir que esse processo de histórias e vidas cruzadas, com sua ausência de personagens centrais, dota o livro duma superfície demasiadamente larga, com prejuízo da profundidade. Mal começa o leitor a formalizar-se com uma personagem ou com um grupo, e já o autor salta para outro capítulo e outras gentes.
para que se tenha uma idéia de como ao tempo que escrevi O Resto é Silêncio eu já estava sendo solicitado por outros temas, basta prestar-se atenção às reflexões de Tônio Santiago nas últimas páginas do volume, quando, no teatro, ele contempla a platéia e pensa nos primeiros povoadores do Rio Grande, nas suas lutas com os índios, as feras e os castelhanos; na solidão das fazendas e ranchos perdidos nos descampados; nas mulheres de olhos tristes a esperarem os maridos que tinham ido para a guerra ou para a áspera faina do campo; nos invernos de minuano, nas madrugadas de geada, nas soalheiras de verão e na glória das primaveras; nas lendas que iam surgindo nos matos, nas canhadas, nos socavões da serra, nos aldeamentos dos índios e nas missões; nas povoaçõesque surgiram e nas antigas que cresciam, tranformando-se em cidades; nos imigrantes europeus e nas povoações que eles criaram e assim por diante, até aquele momento ali no teatro, onde, numa espécie de milagrosa soma, se via aquela rica diversidade de tipos humanos, nomes e almas.
Não seria tudo isso uma espécie de trailer de O Tempo e o Vento?
Extraído do livro O Resto é Silêncio - 14a. edição
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